Sexagem, uma nova abordagem

 

Por Rosana Ferreira

Artigo publicado originalmente no boletim da Sociedade Brasileira de Kinguios (SBK)

Os peixes apresentam padrões de desenvolvimento sexual muito diversos. Em muitas espécies, principalmente as marinhas, a reversão sexual é fato comum. Nas espécies dulcícolas tal propriedade é geralmente disparada por algum gatilho como temperatura, desequilíbrio populacional e até mesmo alguns poluentes conhecidos como disruptores hormonais*. Em tilápias e medakas, é bastante comum a reversão feita em ampla escala por criadores através de indução hormonal ou aumento da temperatura em determinadas fases larvais, a fim de obter um maior número de exemplares machos, que são maiores e mais vantajosos comercialmente.

Em kinguios, o mecanismo de determinação do sexo ainda não está bem estabelecido. Desta forma, mais recentemente alguns estudos estão sendo conduzidos nesse sentido, para lançar uma luz sobre a ocorrência da reversão nesses ciprinídeos.

Meu interesse em abordar esse tema surgiu de uma observação feita em minha caixa d’água, onde atualmente são mantidos catorze kinguios. Em determinado momento deixei somente machos adultos nesse tanque e depois de alguns dias observei comportamento de corte direcionado a um deles. Retirei o peixe alvo e novamente, em pouco tempo, outro kinguio estava sendo cortejado. Isso me deixou confusa e me fez questionar se eu havia errado na sexagem. Mas não, porque todos eles até então apresentavam as características físicas e comportamentais de macho. Esse fato ocorreu por mais quatro ocasiões.

Diante dos fatos, retornei para a caixa duas fêmeas jovens que estavam separadas em um aquário e os episódios imediatamente deixaram de ocorrer, reforçando para mim a possibilidade do evento estar relacionado ao desequilíbrio populacional.

Como nunca havia tomado conhecimento ou visto qualquer menção de eventos de reversão sexual em kinguios, comecei a investigar com alguns criadores conhecidos, até tomar conhecimento de artigos científicos sobre o tema.

Iniciemos com o fato de que a determinação do sexo em peixes envolve sistemas monogênicos e poligênicos com genes localizados nos autossomos (cromossomos não sexuais) ou nos cromossomos sexuais. Em cerca de 10% das espécies de peixes foi documentada a ocorrência de cromossomos sexuais XY ou ZW*. No entanto, em muitos dos casos o sexo cromossômico não é a única via determinante.

Nos kinguios, o sistema observado é o XY/XX (macho/fêmea), porém muito pouco é conhecido sobre as bases moleculares de determinação sexual deste ciprinídeo. Além disso, já foi avaliado que o comportamento típico masculino na espécie é controlado por mecanismos múltiplos, incluindo olfatórios e neuroendócrinos, e que machos e fêmeas de Carassius auratus possuem um sistema olfativo duplo para o comportamento sexual.

A capacidade de reversão sexual nos kinguios é hoje alvo de estudos visando compreender qual é o mecanismo envolvido. Uma abordagem interessante foi feita por Saoshiro et al., onde o tratamento com prostaglandina pode induzir o comportamento sexual típico feminino em machos, e o tratamento andrógeno pode induzir o comportamento sexual típico do sexo masculino em fêmeas. Esses fatos sugerem que os kinguios têm um cérebro sexualmente bipotencial mesmo depois de atingir a maturidade sexual, ao contrário dos mamíferos que têm cérebro sexualmente diferenciado.

De igual modo, outra pesquisa conduzida por Kobayashi et al. encontrou resultados que corroboram tais observações, visto que o tratamento hormonal não afetou o comportamento do sexo original, já que peixes submetidos a tratamento hormonal para reversão mostraram comportamentos típicos do sexo oposto alternadamente, o que indica que o cérebro do kinguio possui uma plasticidade sexual, pois permite regular comportamentos sexuais típicos de ambos os sexos.

Alguns estudos mostraram que a temperatura elevada é um fator importante na reversão de fêmea para macho, se esta exposição ocorrer nos três primeiros meses de vida (os revertidos são denominados de neomachos, pois possuem configuração cromossômica de fêmea XX, porém seu comportamento é masculino).

Já uma abordagem feita por Ming Wen et al. desvenda que há influência de fatores ambientais, mas que a temperatura elevada não é um fator determinante para a ocorrência de reversão de fêmea para macho, pois observou que esse evento ocorria, ainda que em menor porcentagem, em temperaturas bem mais baixas (18°C) devendo, então, haver algum outro fator (possivelmente de cunho social) de influência relevante para este fato.

Em outra linha de abordagem, ao investigar o processo de diferenciação sexual, Goto et al observaram que há uma interação de equilíbrio entre células gonadais somáticas** e células germinativas***. No processo, porém, não foi possível determinar se as células gonadais somáticas são capazes de reverter o sexo cromossômico.

Como podemos constatar, existem muitas variantes envolvidas não somente no processo de reversão em si, mas em todo o processo de diferenciação sexual dos kinguios e que requer estudos mais aprofundados para elucidar toda a sua complexidade.

* Disruptores Hormonais: químicos que causam alterações no sistema endócrino e na produção hormonal.

** Sistema ZW: nesse sistema, é o óvulo quem determina o sexo da descendência. Muito presente em répteis, aves, alguns peixes e insetos.

***Células Gonadais Somáticas: células do tecido das gônadas que carregam o material genético completo.

****Células Germinativas: células reprodutoras que carregam metade do material genético (óvulos, espermatozoides).

Referências

  • Goto, R; Saito, T; Takeda, T; Fujimoto, T; Takagi, M; Arai, K;Yamaha, E. Germ cells are not the primary factor for sexual fate determination in goldfish. Developmental of Biology: 370 (2012) 98-109.
  • Kobayashi, M., Sorensen, P.W. & Stacey, N.E. Hormonal and pheromonal control of spawning behavior in the goldfish  Fish Physiology and Biochemistry 26, 71–84 (2002)
  • Ghosal R, Sorensen PW (2016) .Male-typical courtship, spawning behavior, and olfactory sensitivity are induced to different extents by androgens in the goldfish suggesting they are controlled by different neuroendocrine mechanisms. General and Comparative Endocrinology, 232, 160-173.
  • Kawaguchi Y, Nagaoka A, Kitami A, Mitsuhashi M, Hayakawa Y, Kobayashi M (2014). Gender-typical olfactory regulation of sexual behavior in goldfish. Front Neurosci. 2014, Apr 30;8:91.
  • Shinohara, Y., Kobayashi, M. Sexual bipotentiality of the olfactory pathway for sexual behavior in goldfish. Peixe Sci 87, 435 (2021)
  • Kobayashi, M., Saoshiro, S., Kawaguchi, Y., Hayakawa, Y., and Munakata, A. (2013). “Sexual plasticity of behavior in goldfish,” in Sexual Plasticity and Gametogenesis in Fishes, ed B. Senthilkumaran (New York, NY: Nova Science Pub), 183–201
  • Saoshiro S, Kawaguchi Y, Hayakawa Y, Kobayashi M (2013).Sexual bipotentiality of behavior in male and female goldfish.. Gen Comp Endocrinol 181:265-270
  • Stacey NE, Kobayashi M (1996) Androgen Induction of Male Sexual Behaviors in Female Goldfish. Horm Behav 30:434-445
  • Wen, M; Feron, R; Pan, Q; Guguin, J;Jouanno, E; Herpin, A; Klopp, C; Cabau, C; Zahm, M; Parrinello, H; Journot, L; Burgess, S; Omori, Y, Postlethwait, J; Schartl, M. Sex Chromosome and Sex Locus Characterization in the Goldfish, Carassius auratus. bioRxiv 2019.12.20.875377

Publicado em Agosto/2021

Sobre Rosana Ferreira 10 Artigos
Natural de Rio Claro-SP, iniciou no aquarismo ainda criança, ajudando o irmão mais velho a cuidar de seu aquário. Aos 15 anos, montou seu primeiro aquário sozinha, sem muito sucesso. Teimosa, a partir de então, manteve aquários de várias espécies, especialmente poecílios e anabantídeos. Depois de pequena pausa do hobby, retornou em 2001 com aquário mono espécie de kinguio, espécie pela qual se apaixonou e mantém até o presente. Bióloga por formação, hoje se dedica a pintura de quadros a óleo em tela.

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